Por Maria Clara Wasserman *
Sou educadora há mais de 30 anos. Durante todo esse tempo, eu trabalhei em diversas instâncias do Ensino Médio: Rede Privada, Pública, Terceiro Setor; como educadora, produtora de conteúdo, autora de livros e implementando projetos educacionais. Acompanhando as mudanças desde o Plano Decenal, de 1990 – que antecedeu a Lei de Diretrizes e Bases, de 1996 –, gostaria de trazer, neste artigo, algumas reflexões sobre o Novo Ensino Médio. Antes, no entanto, eu quero contar uma breve história.
Em 2015, eu estava em Manaus, capital do Estado do Amazonas, em uma reunião com os Secretários da Educação (Consed), representando a instituição na qual trabalhava na época. Esse encontro era justamente para discutir sobre a reforma do Ensino Médio pelo Projeto de Lei (PL) 6840/2013. O Consed organizou debates com várias entidades e atores sociais envolvidos diretamente com o tema, e a ideia era discutir carga horária, disciplinas obrigatórias, quantidade de matérias, língua estrangeira etc.]
Nesse ponto do debate, um jovem garçom, servindo os participantes, pediu a palavra. Ele havia recém-saído do Ensino Médio e tinha, sim, muitas coisas a dizer. Ele pediu basicamente duas coisas: que não revogassem a Língua Inglesa do currículo escolar (mas que melhorassem seu ensino ) e que as disciplinas fizessem sentido para o futuro profissional dos jovens. Segundo ele, muito do que foi aprendido “não serviu para nada”. Aplaudido, teve sua fala ouvida. O debate de se excluir o inglês para substituir por espanhol e mais uma língua que fizesse sentido regionalmente, foi encerrado.
O Ensino Médio, até então, não dava aos alunos a possibilidade de fazer escolhas, traçar caminhos, definir trajetórias, fazer experimentações. Esse tipo de estrutura, sem flexibilidade, rígido, engessado, foi incapaz de atender a diferentes expectativas, anseios e projetos de vida dos jovens em sua diversidade.
Com os avanços da sociedade civil, debates, processos de inclusão e ações afirmativas, foi ficando mais notório que o Ensino Médio ficou parado no tempo, não atendendo às demandas das juventudes. Neste sentido, o currículo, extenso, fragmentado, enciclopédico, tornou-se um gargalo em que, no processo de entrada e saída, os estudantes iam abandonando a escola, estudando de maneira mecânica ou mesmo se formando com grandes lapsos de conteúdos – “teve tudo e não teve nada”.
O projeto de reforma havia, até aquele momento, gerado uma ampla discussão em todas as redes de ensino e ampla consulta à sociedade civil, cujos principais pontos eram:
- Universalização, em 20 anos, do Ensino Médio;
- Proibição do Ensino Médio noturno para jovens menores de 18 anos;Ampliação da carga horária noturna para 4.200 horas;
- Organização do currículo em quatro áreas de conhecimento (Linguagens, Matemática, Ciências Humanas e Ciências Naturais);
- Adoção de opções formativas no último ano do Ensino Médio, a critérios dos alunos (I – ênfase em Linguagens, II – ênfase em Matemática; III – ênfase em Ciências da Natureza; IV – ênfase em Ciências Humanas; e V – Formação Profissional);
- Implantação da base nacional comum para o Ensino Médio.
Em 2016, o debate sobre a reforma continuou, com os estados da federação promovendo encontros regionais envolvendo também os diversos atores sociais envolvidos. Em meio a esses encontros, um decreto do então presidente Michel Temer determinou a suspensão desses seminários. A partir de então, uma comissão especial para tratar do assunto, centralizada no Ministério da Educação.
Esse foi o primeiro passo para substituir a PL da Reforma pelo Novo Ensino Médio: a Lei nº 13.415/2017 – que, inclusive, alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. O Novo Ensino Médio, homologado em 2017, tinha obrigatoriamente até 2022 para ser implementado pelas redes. Entre outras características do pacote, essas foram as principais:
Alteração da estrutura
Ampliou o tempo mínimo do estudante na escola de 800 horas para 1.000 horas anuais (até 2022) e definiu uma nova organização curricular.
Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
Trata-se de um conjunto de orientações que norteiam a (re)elaboração dos currículos de referência das escolas das redes públicas e privadas de ensino de todo o Brasil. A base traz conhecimentos essenciais, competências, habilidades e aprendizagens pretendidas para crianças e jovens em cada etapa da Educação Básica. Importante saber: BNCC não é currículo.
Implementação de itinerários formativos
Os itinerários formativos podem ser um conjunto de disciplinas, projetos, oficinas, núcleos de estudo, entre outras situações de trabalho, que os estudantes podem escolher no Ensino Médio. Redes de ensino e instituições escolares teriam autonomia para definir quantos e quais itinerários poderiam implementar, desde que com a participação ativa da comunidade escolar.
Criação da disciplina Projeto de Vida
A princípio, essa disciplina tem como objetivo orientar os estudantes em suas escolhas para os Itinerários Formativos e para sua vida profissional.
Em síntese, foram quatro grandes alterações estruturais.
- Ampliação da carga horária de 2.400 para 3.000 horas;
- Reelaboração dos currículos a partir da BNCC;
- Escolhas dos estudantes em itinerários de aprendizagem;
- Opção por uma formação técnica profissional.
A reforma, em teoria, ampliou aos estudantes a possibilidade de escolhas com a aproximação da sua área de maior interesse. Ampliou a carga horária de estudos e lançou um olhar direto sobre o desenvolvimento de competências e habilidades. Ou seja, ao que tudo indicava, atendia à demanda: a criação de um Ensino Médio que fizesse sentido para os estudantes (como pediu o jovem garçom), marcasse uma trajetória e, principalmente, que não fosse apenas conteudista e “enciclopédico”.
O que não deu certo?
Citando o escritor Gabriel Garcia Márquez, foi uma espécie de “crônica de uma morte anunciada”. As redes de ensino, para ter a possibilidade de implementar o Novo Ensino Médio com qualidade, precisariam:
- Ter passado por um amplo debate com a comunidade escolar para entender o que os estudantes, de fato, precisavam;
- Ter estrutura físico-financeira para implementação;
- Ter professores qualificados e preparados para as mudanças;
- Ter possibilidade de ofertas diversificadas e estruturadas para atender aos alunos;
- Ter itinerários adaptados aos regionalismos e às necessidades locais.
Quase nada disso aconteceu, e um novo debate foi instaurado: revogação do Novo Ensino Médio? Volta ao modelo tradicional? Mudanças estruturais? O atual Governo optou por fazer uma nova rodada de debates com o intuito de avaliar as mudanças a serem feitas.
Agora, em março de 2024, a Câmara Federal acaba de aprovar uma nova proposta alterando as diretrizes da Política Nacional de Ensino Médio, que passa a prever:
- Oferta unicamente presencial (excluindo EAD);
- Carga horária de 3.000 horas mantidas, sendo 2.400 horas para a Formação Básica, com aumento da carga horária das disciplinas de base (Língua Portuguesa, Matemática, Biologia, Química, Física, Filosofia, História, Geografia e Sociologia). Para as outras 600 horas, os estudantes poderão escolher até dois itinerários formativos;
- No caso do Ensino Técnico e Profissional, a formação geral básica será de 1.800 horas, sendo 300 horas destinadas ao reforço de estudos em disciplinas da Base Nacional Comum Curricular, relacionadas à formação técnica profissional oferecida. Já as 900 horas restantes devem ser para o curso técnico escolhido pelo(a) aluno(a);Inglês obrigatório e espanhol mantido como opcional;
- Mantida a possibilidade de contratação de profissionais com “notório saber” para cursos técnicos;
- Mudanças no Enem a partir de 2027, quando deve ser elaborada uma base de diretrizes nacionais de aprofundamento (para os itinerários).
As novas regras, se aprovadas pelo Senado e homologadas, devem entrar em vigor em 2025, mas as redes devem passar por um período de transição.
Concluindo: vai melhorar?
Não sabemos o nível da melhora, mas essas alterações tornam o Novo Ensino Médio menos complexo e mais possível de implementação. Porém, ainda estamos distantes dos principais desafios: universalização do ensino, erradicação da evasão escolar e a transformação do Ensino Médio em um momento importante para a formação do jovem enquanto cidadão, agente de mudança e sujeito de sua própria história – fazendo verdadeiramente sentido para meninas e meninos de todo o Brasil.
* Historiadora, mestre em História Social pela Universidade Federal do Paraná, professora do Ensino Médio, autora de materiais didáticos e paradidáticos, entre eles o livro Jovem Protagonista, com coautoria com Gabriel Medina. Atualmente, é gerente de Projetos na JA Rio de Janeiro.